A reconquista da Península Ibérica.
Uma história de proporções grandiosa, que levou quase 800 anos para seu desfecho final. Duas culturas em embate e que formularam boa parte de nossa civilização, a reconquista da península ibérica e sem dúvidas uma passagem muito importante de nosso percurso como humanidade.
A Reconquista foi um processo histórico de duração extensa, aproximadamente do século VIII ao século XV, que culminou na retomada da Península Ibérica por parte dos reinos cristãos das mãos dos muçulmanos. Ela é tradicionalmente entendida como o esforço militar, político e religioso dos cristãos para reconquistar os territórios ibéricos que haviam sido conquistados pelos muçulmanos após a invasão árabe-bereber de 711, liderada por Tariq ibn Ziyad.
Aqui estão os principais marcos e etapas do processo:
Início da Reconquista (Século VIII)
A invasão muçulmana começou com a Batalha de Guadalete (711), onde o rei visigodo Roderico foi derrotado, resultando na rápida conquista da maior parte da Península Ibérica, que se tornou parte do Califado Omíada e, mais tarde, do Emirado e Califado de Córdoba. Apenas algumas regiões montanhosas do norte da península, como Astúrias e Galiza, permaneceram sob controle cristão.
Em 722, ocorre a Batalha de Covadonga, onde Pelágio (Pelayo), líder das Astúrias, conseguiu uma importante vitória contra os muçulmanos, marcando o início simbólico da Reconquista. A partir desse evento, os pequenos reinos cristãos no norte começaram a consolidar seu poder.
Formação e Expansão dos Reinos Cristãos (Séculos IX ao XI)
Ao longo dos séculos IX e X, surgiram ou se expandiram importantes reinos cristãos, como:
- Reino das Astúrias, que mais tarde se tornaria o Reino de Leão.
- Reino de Navarra.
- Condado de Castela, que se tornaria independente e se converteria no Reino de Castela.
- Condados Catalães, que formaram a Catalunha, vinculada ao Reino Franco.
Os reinos cristãos, em tempos, lutaram entre si, mas também mantiveram uma resistência contínua contra os muçulmanos. Os avanços dos cristãos foram lentos e instáveis, influenciados pelas crises internas no califado muçulmano e pelas alianças com outros reinos.
Período de Avanço Cristão (Séculos XI ao XIII)
O Califado de Córdoba começou a fragmentar-se em diversos pequenos reinos muçulmanos chamados de taifas no século XI. Esta fragmentação enfraqueceu o poder muçulmano na península e abriu espaço para as incursões cristãs.
- Em 1085, o rei Afonso VI de Leão e Castela conquistou Toledo, um importante centro cultural e estratégico, marcando um grande avanço para os cristãos.
- As vitórias cristãs levaram os governantes das taifas a pedir ajuda aos almorávidas, um império berbere que dominava o norte da África. Embora os almorávidas tivessem conseguido deter temporariamente o avanço cristão, seu domínio foi curto.
Grande Avanço Cristão: Batalha de Las Navas de Tolosa (1212)
Um dos eventos decisivos da Reconquista foi a Batalha de Las Navas de Tolosa, em 1212, onde uma coalizão de reinos cristãos (Leão, Castela, Navarra e Aragão) derrotou as forças muçulmanas dos Almóadas, sucessores dos almorávidas. Essa vitória abriu caminho para a reconquista do sul da Península.
A Queda do Reino de Granada (1492)
A última fase da Reconquista envolveu a unificação dos reinos de Castela e Aragão através do casamento dos Reis Católicos, Isabel I de Castela e Fernando II de Aragão, em 1469. Juntos, eles empreenderam a campanha final contra o Reino de Granada, o último reduto muçulmano na Península Ibérica.
Em 1492, Granada foi capturada pelos exércitos dos Reis Católicos, encerrando oficialmente a Reconquista. Este ano também marca a expulsão dos judeus da Espanha, bem como a chegada de Cristóvão Colombo ao Novo Mundo, transformando 1492 num ano símbolo para a consolidação do poder cristão ibérico.
Consequências da Reconquista
A Reconquista teve profundas implicações para a história europeia e ibérica. Algumas delas incluem:
- Unificação territorial da Espanha e a criação de um poderoso estado centralizado sob os Reis Católicos.
- Impactos religiosos, como a imposição do cristianismo e a perseguição a judeus e muçulmanos, culminando nas conversões forçadas e na criação da Inquisição Espanhola.
- Colonização do Novo Mundo: Com a unificação da Espanha, o país se voltou para a expansão além-mar, resultando na exploração e colonização das Américas.
A Reconquista, além de ser um processo militar, também foi um movimento religioso e cultural que moldou profundamente a identidade e a história da Península Ibérica.
Perseguição Muçulmana a Outras Religiões na Península Ibérica (711-1492)
Durante a ocupação muçulmana da Península Ibérica, que durou 781 anos (de 711 a 1492), houve tanto momentos de relativa tolerância quanto períodos de severa perseguição contra cristãos e judeus. Embora o sistema de dhimma garantisse proteção limitada a esses grupos em troca de tributos, essa condição também os colocava em uma posição de inferioridade e vulnerabilidade. Com o passar do tempo, especialmente sob regimes mais rigorosos como os almóadas, as perseguições se intensificaram.
1. O Sistema de Dhimma e as Restrições
- Cristãos e judeus eram considerados dhimmis, ou seja, “protegidos”, mas com status de segunda classe.
- Obrigados a pagar um imposto especial (jizya) para manter sua fé, muitas vezes elevado e considerado uma carga pesada, especialmente para as classes mais pobres.
- Além da jizya, havia o kharaj, um imposto sobre as terras pertencentes a não-muçulmanos, que frequentemente era maior do que os tributos cobrados dos muçulmanos.
- A cobrança da jizya muitas vezes era feita de forma humilhante, com os não-muçulmanos sendo obrigados a se apresentar publicamente para pagar.
- Em períodos de maior intolerância, como sob o domínio dos almóadas, a carga tributária aumentava drasticamente, tornando-se insustentável para muitas comunidades cristãs e judaicas, levando muitos à conversão forçada para escapar da opressão econômica.
- Restrições religiosas:
- Proibição de construir novas igrejas e sinagogas ou reformar as antigas.
- Não podiam exibir publicamente sua religião.
- Eram obrigados a vestir roupas distintas para serem identificados.
- Proibição de converter muçulmanos ao cristianismo ou judaísmo.
2. Martírio de Córdoba (Século IX)
- Durante o reinado do emir Abd ar-Rahman II (822-852), vários cristãos foram executados por se recusarem a renunciar à sua fé ou por criticar o Islã.
- O grupo conhecido como Mártires de Córdoba foi perseguido entre 850 e 859, sendo decapitado por resistir às ordens islâmicas.
3. Perseguições Sob os Almorávidas (Século XI-XII)
- Os almorávidas, uma dinastia berbere de orientação islâmica rigorosa, reprimiram judeus e cristãos de forma mais intensa.
- Conversões forçadas e aumento da repressão sobre práticas religiosas não muçulmanas.
- Proibição de vínculos comerciais e políticos com os reinos cristãos ao norte.
4. O Domínio Almóada (Século XII-XIII) – O Período Mais Brutal
- Os almóadas, uma seita fanática do Islã originária do Norte da África, impuseram perseguições severas:
- Conversão forçada de judeus e cristãos sob pena de morte ou exílio.
- Destruição de igrejas e sinagogas.
- Proibição total do cristianismo e judaísmo em territórios almóadas.
- Execução de líderes religiosos que se recusavam a converter-se.
Exemplo:
- Córdoba, 1148 – A comunidade judaica foi destruída e muitos fugiram para Castela ou Portugal.
Estimativa de Mortes
Embora não haja registros exatos, historiadores estimam que dezenas de milhares de cristãos e judeus tenham sido mortos ao longo dos séculos de domínio islâmico na Península Ibérica. As principais ondas de perseguição, como as promovidas pelos almóadas no século XII, resultaram em massacres significativos, além de um número ainda maior de exilados. Documentos da época relatam execuções em massa, especialmente contra aqueles que resistiam à conversão forçada.
5. O Período Pós-Reconquista (1492-1614)
Após a conquista final de Granada em 1492, iniciou-se um período de cerca de 120 anos conhecido como pós-Reconquista, durante o qual a monarquia espanhola implementou políticas de conversão forçada, repressão e expulsão contra os muçulmanos e judeus remanescentes.
- Em 1492, os Reis Católicos decretaram a expulsão dos judeus que se recusassem a se converter ao cristianismo.
- Em 1502, os muçulmanos na Coroa de Castela também foram obrigados a se converter ou partir.
- Entre 1609 e 1614, ocorreu a expulsão dos mouriscos (muçulmanos convertidos ao cristianismo), resultando na deportação de centenas de milhares de pessoas.
Esse período consolidou o domínio cristão na Península Ibérica e extinguiu a presença muçulmana e judaica de forma definitiva, encerrando séculos de coexistência religiosa, ainda que muitas vezes marcada por conflitos.
6. Reis Cristãos Tolerantes
Embora muitos reis cristãos tenham adotado políticas de perseguição contra muçulmanos e judeus, alguns monarcas se destacaram pela tolerância relativa:
- Afonso VI de Leão e Castela (r. 1065-1109): Após a conquista de Toledo em 1085, permitiu que os muçulmanos continuassem a praticar sua religião e manter suas mesquitas, desde que pagassem impostos.
- Afonso X, o Sábio (r. 1252-1284): Criou um ambiente de convivência intelectual entre cristãos, judeus e muçulmanos, promovendo traduções de textos árabes e hebraicos.
- Jaime I de Aragão (r. 1213-1276): Após a conquista de Valência e Maiorca, concedeu tratados garantindo segurança a comunidades muçulmanas em troca de lealdade e tributos.
- Henrique IV de Castela (r. 1454-1474): Protegeu os judeus contra ataques populares e resistiu a pressões para perseguições mais intensas.
Apesar dessas iniciativas, a maior parte dessas políticas de tolerância foi revertida por sucessores mais intolerantes, culminando na expulsão de judeus e muçulmanos entre os séculos XV e XVII.
Embora houvesse períodos de relativa tolerância, houve também momentos de perseguição brutal durante o domínio islâmico na Península Ibérica. Os almóadas foram os mais agressivos, eliminando qualquer possibilidade de coexistência religiosa. O resultado foi o exílio de milhares de cristãos e judeus, além da destruição de sua cultura e tradições em territórios dominados pelo Islã radical. Somente com o avanço da Reconquista Cristã é que essas populações puderam retornar e reestabelecer suas comunidades.
A Perseguição Cristã Contra Judeus e Muçulmanos Pós-Reconquista
Após a Reconquista, o período de retomada dos territórios ibéricos do domínio muçulmano, iniciou-se uma intensa perseguição contra judeus e muçulmanos na Península Ibérica. Sob o domínio cristão, os reis e a Igreja impuseram medidas severas para converter, expulsar ou eliminar aqueles que não se adequassem à fé cristã.
Os judeus, que haviam desempenhado papéis fundamentais na sociedade ibérica como médicos, comerciantes e intelectuais, tornaram-se alvo de crescente hostilidade. Em 1492, os Reis Católicos Isabel e Fernando promulgaram o Édito de Alhambra, ordenando a expulsão dos judeus que se recusassem a converter-se ao cristianismo. Muitos foram forçados ao batismo, enquanto outros fugiram para diferentes partes da Europa e do Império Otomano. Aqueles que permaneceram enfrentaram a Inquisição Espanhola, que perseguia os chamados “cristãos-novos”, suspeitos de praticar sua fé em segredo.
Da mesma forma, os muçulmanos, conhecidos como mouriscos, sofreram pressões para se converterem ao cristianismo. Após a capitulação de Granada em 1492, os tratados iniciais garantiam liberdade religiosa, mas logo foram revogados. A conversão forçada, a proibição do idioma árabe e das práticas culturais islâmicas levaram a revoltas, como a Rebelião das Alpujarras. No início do século XVII, os mouriscos foram definitivamente expulsos da Espanha, marcando o fim da presença muçulmana significativa na região.
Essas perseguições não apenas transformaram a demografia da Península Ibérica, mas também deixaram marcas profundas na história europeia, reforçando divisões religiosas e políticas que ecoaram por séculos.
A história mostra que não existem santos ou vilões absolutos, mas sim aqueles que detêm o poder em determinado momento. O ser humano, independentemente de seu credo ou origem, age conforme as circunstâncias e os interesses de sua época. O passado nos ensina que as narrativas mudam conforme os vencedores, e que a moralidade muitas vezes é moldada pelas mãos daqueles que governam. Assim, compreender os erros e acertos da história é essencial para que não se repitam os ciclos de intolerância e opressão.
Fontes
- Fletcher, Richard. Moorish Spain. University of California Press, 1992.
- Menocal, Maria Rosa. The Ornament of the World: How Muslims, Jews, and Christians Created a Culture of Tolerance in Medieval Spain. Little, Brown and Company, 2002.
- Watt, W. Montgomery. A History of Islamic Spain. Edinburgh University Press, 1992.
- Fernández-Morera, Darío. The Myth of the Andalusian Paradise: Muslims, Christians, and Jews under Islamic Rule in Medieval Spain. ISI Books, 2016.